REUNIÃO DE ESTUDOS, de ontem (22.11.12)
Obra "O CÉU E O INFERNO" - depoimento de “ESPÍRITOS FELIZES” - entrevista concedida a Allan Kardec, por SAMUEL FILIPE. Excelente material de reflexão para nós!
Este era um homem de bem na verdadeira acepção da palavra. Ninguém
se lembrava de o ter visto cometer uma ação má ou errar voluntariamente no que
quer que fosse. De um devotamento extremo pelos amigos, podia-se ter como certo
o seu acolhimento, em se tratando de quaisquer favores, ainda que contrários ao
seu próprio interesse.
Trabalhos, fadigas, sacrifícios, nada o impedia de ser útil, e isto
sem ostentação, admirando-se quando se lhe atribuía por estes predicados um
grande mérito. Jamais desprezou os que lhe fizeram mal; antes se dava pressa em
servi-los como se bem semelhante lhe houvessem feito. Em se tratando de
ingratos, dizia: Não é a mim, porém a eles que se deve lastimar. Posto que
muito inteligente e dotado de natural vivacidade, teve na Terra uma vida
obscura, laboriosa e bordada de rudes provações. Podia-se comparar a essas
naturezas de escol que vivem na sombra, das quais o mundo não fala e cujo
brilho não se reflete na Terra. Haurira no conhecimento do Espiritismo uma fé
ardente na vida futura e uma grande resignação para todos os males da
existência terrena. Finalmente, faleceu em dezembro de 1862, na idade de 50 anos, de moléstia atroz, sendo o seu passamento muito sensível
à família e aos amigos. Evocamo-lo alguns meses depois do trespasse. - P. Tendes uma recordação nítida dos últimos instantes da vida
na Terra? - R. Perfeitamente, conquanto essa recordação reaparecesse
gradualmente. No instante preciso do desprendimento eram confusas as minhas
idéias.
- P. Quereríeis, a bem da nossa instrução e do interesse que nos
mereceis pela vossa vida exemplar, descrever como ocorreu o vosso trespasse da
vida corporal para a espiritual? - R. “De bom grado, tanto mais quanto a narrativa
não aproveitará somente a vós, mas a mim próprio, por isso que, dirigindo o meu
pensamento para a Terra, a comparação faz-me apreciar melhor a bondade do
Criador. Sabeis que de tribulações provei na vida; entretanto, jamais me
faltou coragem na adversidade, graças a Deus! E hoje, felicito-me! E ainda tremo ao pensar que tudo quanto sofri se anularia caso desfalecesse, tendo de recomeçar novamente as provações! Oh! meus amigos, compenetrai-vos firmemente
desta verdade, pois nela reside a felicidade do vosso futuro. Não é, por certo,
comprar muito caro essa felicidade por alguns anos de sofrimento! Ah! Se
soubésseis o que são alguns anos comparados ao infinito! Se de fato a minha
última existência teve algum mérito aos vossos olhos, outro tanto não diríeis
das que a precederam. E não foi senão à força de trabalho sobre mim mesmo, que
me tornei o que ora sou. Para apagar os últimos traços das faltas anteriores,
era-me preciso sofrer as últimas provas que voluntariamente aceitei. Foi na
firmeza das minhas resoluções que escudei a resignação, a fim de sofrer sem me
queixar. Hoje abençôo essas provações, pois a elas devo o ter rompido com o
passado - simples recordação agora que me permite contemplar com legítima
alegria o caminho percorrido.
Oh! vós que me fizestes padecer na Terra; que fostes cruéis e
malévolos para comigo, que me humilhastes e afligistes; vós, cuja má-fé tantas
vezes me acarretou duras privações, não somente vos perdôo mas até vos
agradeço. Intentando fazer mal, não suspeitáveis do bem que esse mal me
proporcionaria. É verdade, portanto, que a vós devo grande parte da felicidade
de que gozo, uma vez que me facultastes ocasião para perdoar e pagar o mal com
o bem. Deus colocou-vos em meu caminho para aferir a minha paciência,
exercitando-me igualmente na prática da mais difícil caridade: a de amar os
inimigos.
Não vos impacienteis com esta divagação, porquanto vou responder
agora à vossa pergunta. Conquanto sofresse cruelmente com a moléstia que me
acometeu, quase não tive agonia: a morte sobreveio-me como um sono, sem lutas nem
abalos. Sem temor pelo futuro, não me apeguei à vida e não tive, por conseguinte,
de me debater nos últimos momentos. A separação completou-se sem dor, nem
esforço, sem que eu mesmo de tal me apercebesse. Ignoro que tempo durou o sono,
que foi curto aliás. Meu calmo despertar contrastava com o estado precedente:
não sentia mais dores e exultava de alegria; queria erguer-me, caminhar, mas um
torpor nada desagradável, antes deleitoso, me prendia, e eu me abandonava a ele
prazerosamente, sem compreender a minha situação, conquanto não duvidasse ter já
deixado a Terra. Tudo que me cercava era como se fora um sonho. Vi minha mulher
e alguns amigos ajoelhados no meu quarto, chorando, e considerei de mim para
mim que me julgavam morto. Quis então desenganá-los de tal idéia, mas não pude
articular uma palavra, e daí concluí que sonhava. O fato de me ver cercado de
pessoas caras, de há muito falecidas, e ainda de outras que à primeira vista
não podia reconhecer, fortalecia em mim essa idéia de um sonho, em que tais
seres por mim velassem. Esse estado foi alternado de momentos de lucidez e de sonolência,
durante os quais eu recobrava e perdia a consciência do meu “eu”. Pouco a pouco
as minhas idéias adquiriram mais lucidez, a luz que entrevia, por denso
nevoeiro, fez-se brilhante; e eu comecei a compreender-me, a reconhecer-me,
compreendendo e reconhecendo que não mais pertencia a esse mundo. Certamente,
se eu não conhecesse o Espiritismo, a ilusão perduraria por muito mais tempo. O
meu invólucro material não estava ainda inumado e eu o olhava com piedade, felicitando-me pela separação, pela liberdade. Pois se eu era
tão feliz por me haver enfim desembaraçado! Respirava livremente como quem sai
de uma atmosfera nauseante; indizível sensação de bem-estar penetrava todo o meu
ser, a presença dos que amara alegrava-me sem me surpreender, antes parecendo-me
natural, como se os encontrasse depois de longa viagem. Uma coisa me admirou logo:
o compreendermo-nos sem articular uma palavra! Os nossos pensamentos
transmitiam-se pelo olhar somente, como que por efeito de uma penetração
fluídica. Eu não estava, no entanto, completamente livre das preocupações
terrenas, e, como para realçar mais a nova situação, a lembrança do que
padecera me ocorria de vez em quando à memória. Sofrera corporal e moralmente,
sobretudo moralmente, como alvo que fui da maledicência, dessas infinitas preocupações
mais acerbas talvez que as desgraças reais,
quando degeneraram em perpétua ansiedade. E ainda bem não se
desvaneciam tais impressões, já eu interrogava a mim mesmo se de fato delas me libertara, parecendo-me
ouvir ainda umas tantas vozes desagradáveis. Reconsiderando as dificuldades que
tanto e tantas vezes me atormentavam, tremia; e procurava, por assim dizer, reconhecer-me,
assegurar-me que tudo aquilo não passava de fantástico sonho. E quando cheguei
à conclusão, à realidade dessa nova situação, foi como se me aliviasse de um
peso enorme. É bem verdade, dizia, que estou isento desses cuidados que fazem o
tormento da vida! Graças a Deus! Também o pobre, repentinamente enriquecido,
duvida da realidade da sua fortuna e alimenta por algum tempo as apreensões da
pobreza. Assim era eu. Ah! pudessem os homens compreender a vida futura, e que
força, que coragem esta convicção não lhes daria na adversidade.
Quem deixaria então, na Terra, de prover e assegurar-se da
felicidade que Deus reserva aos filhos dóceis e submissos? Gozos ambicionados,
invejados, tornar-se-iam mesquinhos em relação aos que eles desprezam!”
- P. Esse mundo tão novo e comparado ao qual nada vale o nosso,
bem como os numerosos amigos que nele reencontrastes, fizeram-vos esquecer a
família e amigos encarnados?
- R. Se os tivesse esquecido seria indigno da felicidade de que
gozo. Deus não recompensa o egoísmo, pune-o. O mundo em que me vejo pode fazer
com que desdenhe a Terra, mas não os Espíritos nela encarnados. Somente entre
os homens é que a prosperidade faz esquecer os companheiros de infortúnio.
Muitas vezes venho visitar os que me são caros, exultando com a recordação que
de mim guardaram; assisto às suas diversões, e, atraído por seus pensamentos,
gozo se gozam ou sofro se sofrem.
O meu sofrimento é, porém, relativo e não se pode comparar ao sofrimento
humano, uma vez que compreendo o alcance, a necessidade e o caráter transitório
das provações. Esse sofrimento é, ao demais, suavizado pela convicção de que
aqueles a quem amo virão também por sua vez a esta mansão afortunada onde a dor
não existe. Para torná-los dignos dela, dessa mansão, é que me esforço por
sugerir-lhes bons pensamentos e sobretudo a resignação que tive, consoante a
vontade de Deus. A minha desolação avulta quando os vejo retardar o advento por
falta de coragem, murmúrios, vacilações e sobretudo por qualquer ato
reprovável. Trato então de os desviar do mau caminho, e, se o consigo, é isso
uma felicidade não só para mim, como para outros Espíritos; quando, ao
contrário, a intervenção é improfícua, exclamo com pesar: mais um momento de
atraso; mas consola-me a idéia de que nada se perde irremissivelmente.
Samuel Filipe.”